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Carta de Brasília da XVI Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas

Os pesquisadores e as pesquisadoras do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo – GPTEC e demais participantes da XVI Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, realizada nos dias 07, 08 e 09 de novembro de 2023, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB, Brasília – DF, por ocasião dos 20 anos de constituição do referido Grupo de Pesquisa:

  1. Reafirmam intransigente defesa do direito ao trabalho digno e ao direito fundamental de não ser escravizada(o), chamando a atenção sobre a absoluta necessidade da manutenção do atual conceito de trabalho análogo ao escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, fruto de construção social, avanço político e de compromisso institucional assumido pelo país perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos na solução amistosa do caso José Pereira (nº 11.289), para a proteção da vida, integridade e dignidade dos trabalhadores e não só da liberdade de locomoção;
  2. Externam profunda preocupação com a anulação de decisões da Justiça do Trabalho, com o esvaziamento da sua competência constitucional, prevista no art. 114, I da Constituição, com o alargamento das hipóteses de cabimento das reclamações constitucionais no Supremo Tribunal Federal sem a estrita vinculação ao princípio da aderência e também com a ampliação do enquadramento de situações não previstas nos julgamentos que originaram precedentes vinculantes pela Suprema Corte. Diversas decisões têm desconsiderado as hipóteses de fraudes, devidamente comprovadas na jurisdição trabalhista, transformando o Supremo Tribunal Federal em instância revisora dessas decisões, fora das hipóteses legais. De acordo com a Constituição, o princípio da dignidade humana é adotado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e deve nortear a interpretação de todo o ordenamento jurídico. Ressaltam que a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, declarou a responsabilidade do Estado brasileiro frente a ausência de proteção dos trabalhadores contra a escravização;
  3. Reiteram que há no Brasil diversos casos de escravização de trabalhadoras e de trabalhadores mediante terceirização, quarteirização e todas as formas de fraude dos contratos de trabalho, ressaltando que o fato de o Supremo Tribunal Federal ter autorizado a terceirização em todas as atividades, não significa isenção de responsabilidades em casos de escravização mediante referidos tipos de contratos;
  4. Reafirmam que existe tipificação adequada para o crime de manter trabalhadores em condições análogas à escravidão, tendo em vista que a maior parte dos resgates realizados pelos auditores fiscais do trabalho ocorre em face de jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho (como alojamento em barracos de lona ou palha, expostos a intempéries e animais peçonhentos; o repouso em condições totalmente inadequadas; o consumo de água e comidas impróprias; o desempenho de atividades sem qualquer proteção à saúde e segurança) no interior do Brasil e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no Inquérito 3412-AL é pautada na proteção da dignidade dos trabalhadores e não só na liberdade ambulatorial. Ressalta-se que não se trata apenas do descumprimento de normas trabalhistas, mas de violação dos direitos humanos. Registram que a Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho, que trata da saúde e segurança no trabalho, foi incluída, em 2022, como norma fundamental, o que obriga os países a adotarem mecanismos efetivos para a melhoria das condições de trabalho e proteção da saúde e segurança das trabalhadoras e trabalhadores;
  5. Alertam a sociedade de que o Brasil já foi citado pela OIT como exemplo para a comunidade internacional, de um país fortemente comprometido com o enfrentamento da escravidão contemporânea, justamente em razão do atual conceito previsto no art. 149 do Código Penal, o que, inclusive, inspirou a alteração dos ordenamentos jurídicos de outros países, como da França, Espanha e Venezuela e de que a alteração do conceito representará violação dos instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, além de incontestável retrocesso na proteção de direitos historicamente conquistados;
  6. Recomendam que haja profundos debates e reflexão no sistema de Justiça, em especial no Judiciário, acerca de decisões que conduzam a revitimização das pessoas escravizadas, em especial às vítimas do racismo estrutural e institucional, do capacitismo, da violência de gênero, cujos direitos fundamentais lhes são negados, a exemplo do que ocorreu no caso da trabalhadora doméstica Sônia Maria de Jesus com a permissão do regresso da dela ao local de onde fora resgatada pela fiscalização trabalhista da condição análoga à de escravo;
  7. Enfatizam a urgente necessidade de formulação e aplicação de ações transversais com atenção às especificidades de gênero, raça e etnia no âmbito da política nacional para erradicação ao trabalho escravo, assegurando recursos orçamentários para programas e ações dessa política nacional;
  8. Afirmam a necessidade de desenvolver mecanismos de proteção às trabalhadoras e aos trabalhadores, em relação às novas tecnologias de controle e gerenciamento do trabalho humano, de modo que não induzam o trabalho análogo ao de escravo;
  9. Aduzem que é necessário o reconhecimento da imprescritibilidade das repercussões legais do trabalho escravo contemporâneo no judiciário brasileiro como um todo, visto que a prescrição é incompatível com a ordem constitucional brasileira e com a ordem internacional, que prega a defesa dos direitos humanos, devendo o Supremo Tribunal Federal pacificar a jurisprudência brasileira, no julgamento da Arguição de descumprimento de preceito fundamental n.º 1.053 (ADPF);
  10. Apontam a necessidade de medidas concretas por parte dos setores produtivos para mudanças de comportamento nos seus modelos de produção, em conformidade com princípios de devida diligência em direitos humanos, garantindo sustentabilidade socioambiental em suas cadeias produtivas;
  11. Urgem a presença e a participação dos Ministérios responsáveis pela gestão das áreas de Assistência Social, Saúde, Educação e Meio Ambiente na elaboração do III Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que se dará no ano de 2024 no âmbito da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE);
  12. Declaram, finalmente, o firme propósito de caminharem unidos na luta pelo combate ao trabalho análogo ao escravo no Brasil, confiantes no diálogo social e na colaboração entre os diferentes atores que integram a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE.

Brasília, 9 de novembro de 2023.